segunda-feira, 30 de maio de 2011
Acordando
Saítes tão de mansinho que nem percebi. Fiquei só, é hora de ir também. Ir e não voltar.
Rio de Janeiro, RJ, 1989.
domingo, 29 de maio de 2011
Temporal
O sol apagou a sua luz. Nas trevas do dia que se fez noite, o vento açoitava a vida. Folhas se erguiam, em um violento farfalhar, na espiral do vento, e se elevavam ao céu. A chuva parecia iminente, temporal que lavaria o mundo.
O vento dobrava árvores, gritava, rugia assustando os homens. A chuva não veio, foi levada pelo vento, que levou meu coração.
Rio de janeiro, RJ, 31/01/1988.
quarta-feira, 25 de maio de 2011
Intrusa
Chegaste, sem medo, tão perto. Teus olhinhos me fitavam tão intensamente. Não sabias, mas como me perturbavas!
Displicentemente acendi o cigarro, e tu ali, parada. Queimei-te o nariz, correste, bem feito!
Rio de janeiro, RJ, 31/01/1988
segunda-feira, 23 de maio de 2011
PARA VOCÊ, que disse que não viria
Sei que mesmo tendo dito que não, você virá logo após terminar a novela Tieta do Agreste. Talvez eu esteja dormindo, docemente embriagado ao sentir no travesseiro teu cheiro de amor.
Não importa, você deitará seu corpo frio e molhado da chuva ao lado do meu; talvez eu abra os olhos, mas não estarei sentindo ou vendo. Mas tenha certeza, no meu mais profundo sono, meu coração baterá mais feliz com sua doce presença.
Boa noite!
Recreio dos Bandeirantes, Rio de janeiro, 31/10/1989
Este foi o texto de um bilhetinho deixado sobre a mesa de cabeceira, antes de dormir. No outro dia, vi que ela veio. Nos demais dias percebi que veio para ficar, e ficou até hoje... Que bom.
domingo, 22 de maio de 2011
Bruxa
Diz a lenda: -"Quando ele e ela, tocarem as vestes da bruxa, jamais se separarão".
Aí está a "minha bruxinha" para que a toques. Eu, como já a toquei! Parece que só eu a toquei.
Quando te ofereço essa bruxinha espero que entendas tudo o que quero dizer. Espero que compreendas tudo o que a timidez não me deixa dizer.
E, assim, a lenda se tornará viva, para os que como eu, não conseguem dizer tudo o que sentem. E para os que como tu, dizem, mas sabem que em amor, nunca se diz tudo.
Enfim, eu não desejava hoje, dizer-te nada. Queria só te dar a bruxa, e é o suficiente, quando as palavras são poucas e o amor é muito.
Rio de janeiro, RJ 24/05/1982.
sábado, 21 de maio de 2011
Só para relembrar. E é o suficiente!
Lembras do jardim? E daqueles lençóis quentes? Será que ainda lembras dos banhos? Banhos que eu "temperava"... E a touca improvisada com o plástico das toalhas, para não molhar o cabelo, lembras?
Lembras do ar condicionado? Lembras do barulho e do frio que ele fazia? E o carro? Aquele que não subia, lembras? Vexame, nem de ré ele ia, e o largamos na estrada...
E os bolos? Um no restaurante do Museu de Arte Moderna, e foi teu. Mas houve o meu, no dia da Olimpíada da empresa.
Lembras dos telefonemas, os recados? Coisa arriscada! Mas compensava só pelo prazer de te ver, te ouvir, te possuir, misturar tudo dentro de ti.
Lembras quando chorando pedistes: - "Aconteça o que acontecer, voce jura que não me deixa?"
- Jurei. Mas e aí? Tu me deixastes...
Mas, e aí? Lembras de nossas músicas? E os encontros no lugar de sempre, à hora de sempre, para o programa de sempre? E sabes que ainda hoje, sempre que posso, ainda volto lá?
- E para quê?
- Para nada, dirás.
- E por que volto?
- Por nada, e é o suficiente!
- Bruxa!
- Monstro! Louco!
- Ah! Tu...
- Amor!...
- ... e me deixastes!
Mas tudo bem. E aí? Vamos relembrar. Lembras dos bilhetes? Os presentes? E teu telegrama apaixonado que dizia: "te amo!"
Ah! E os cartões? Foram eles! É foi um deles, um cartão com uma rosa amarela. Rosa do meu jardim interior. Meu jardim da vida, para ti. Acharam-no! Como tudo complicou, lembra?
E aí, bruxinha? Acabou o jardim, acabou você, acabou minha vida. Será que foi o suficiente?
Rio de Janeiro, RJ, 24/05/1980
sexta-feira, 20 de maio de 2011
Poema para uma menina morta que recolhe assinaturas
Sou eu quem bate à tua porta.
Golpeio em todas as portas.
Não me podeis enxergar:
É impossível ver-se uma menina morta!
Morri fazem vinte e três anos,
Em Hiroshima.
Sou uma menina de sete anos,
As crianças mortas não crescem.
Primeiro incendiaram-se os meus cabelos,
Minhas mãos e olhos arderam depois,
Converti-me num punhado de cinzas
E meu sangue misturou-se ao vento.
Para mim, já nada vos peço,
Carinho, já não me podeis dar;
Menina que ardeu como folha de papel,
E já nem pode mastigar bombons
Eu golpeio e golpeio a tua porta:
- Faze-me a graça de uma assinatura
Para que as crianças não sejam assassinadas
E possam comer bombons.
Rio de janeiro, 1966.
Foto aleatória após o bombardeio estadunidense em Hiroshima.
quarta-feira, 18 de maio de 2011
Ana, minha vida
Eu te conheci no mar! E o teu nome é Ana! Mar e Ana. Vamos ter Mariana... Se inverter o nome vai dar: Ana Maria, que por acaso é tua irmã... Ana Maria ou Maria Ana, só dá uma coisa: MARIANA.
Eu te conheci no mar, teu nome é Ana, então MAR + ANA = MARIANA. Ele já veio em 91, é Pedro Paulo. Agora é ela, Mariana. E se for homem? Então escolha o nome. Desde que escolhas Pedro Afonso! Tá bom?
Se nascer Pedro Afonso, vou amá-lo, mas prometa-me que voce vai me dar MARIANA!!!
Bilhete de 05/05/94. Mariana chegou pouco depois, em 04/06/94
Mar e Ana
O mar
ri da beleza
de Ana.
Ana
ri
da solidão
do mar.
Recreio dos Bandeirantes, RJ, 1991, nossa 1ª gravidez.
ri da beleza
de Ana.
Ana
ri
da solidão
do mar.
Recreio dos Bandeirantes, RJ, 1991, nossa 1ª gravidez.
segunda-feira, 16 de maio de 2011
Língua portuguesa
Tenho andado há muito tempo preocupado com as agressões sofridas pela nossa língua portuguesa. Não bastassem nossos compatriotas que saem da faculdade “iscrevendo” meio torto, ainda vem hoje a Rede Globo dar uma notícia interessante. A maior colônia estrangeira em Portugal é a Colônia Brasileira. Em virtude disto, a própria Rede Globo resolveu promover lá um DIA DO BRASIL, grande festa, com artistas brasileiros, milhares de compatriotas embandeirados nas ruas. Mas a este ato, a Globo chamou de BRAZIL DAY, pode? Olavo Bilac deve estar se contorcendo na tumba, ele, logo ele, autor do soneto Língua Portuguesa, que reproduzo abaixo.
Para escorregarmos e cometermos certos deslizes, ou para evitá-los, se estudarmos direitinho, há nova preocupação: O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Sim, porque desde 1º de janeiro de 2009 entrou em vigor no Brasil a nova grafia do português, definida pelo Acordo Ortográfico de 1990.
Oito países de língua portuguesa ratificaram o acordo. Foram eles: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
O Brasil ratificou o acordo em 1995, implantou em 2009, estabelecendo um período de transição, e, finalmente, o torna obrigatório a partir de 2013. Isto quer dizer que “autoescola” ainda pode ser grafada como “auto-escola” sem que se constitua erro, até 2013.
O trema foi extinto (mas há exceções), algumas palavras perderam acentos e as regras do hífen mudaram. Agora é preciso reaprender a escrever do jeito novo. Ouvi muita gente lamentar a perda do trema. Muitos achavam certo charme usá-lo. No entanto poucos sabiam usá-lo. Terá a linguiça do nosso churrasco o mesmo sabor da antiga lingüiça? Pior o meu computador, que quando escrevo sem trema, teima em corrigir automaticamente, colocando o sinal.
O acordo é muito vasto, e é bom conhecê-lo na íntegra, para escrever melhor. Afinal, já o devemos seguir agora, e teremos mesmo que segui-lo obrigatoriamente em 2013, que já está em cima. Tire um tempinho, conheça e estude o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Depois de bem estudado, veja se você passa pela bateria de testes.
Já que toquei no nome de Olavo Bilac, é bom lembrar quem foi ele. Além de poeta parnasiano, cronista, contista, conferencista e autor de livros didáticos, Bilac deixou também na imprensa do tempo do Império e dos primeiros anos da República vasta colaboração humorística e satírica, assinada com os mais variados pseudônimos, entre os quais os de Fantásio, Puck, Flamínio, Belial, Tartarin-Le Songeur, Otávio Vilar, etc., assinando, em outras vezes, o seu próprio nome. Nascido no Rio de Janeiro a 16 de dezembro de 1865 foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, em que ocupou a cadeira nº. 15, que tem Gonçalves Dias por patrono. No seu principal livro, "Poesias", incluiu Bilac alguns sonetos satíricos, sob o título de "Os Monstros". Escreveu livros em colaboração com Coelho Neto, Manuel Bonfim e Guimarães Passos, sendo que, com este último, o volume intitulado "Pimentões", de versos humorísticos.
Foi deste seu livro principal, Poesias (Livraria Francisco Alves - Rio de Janeiro, 1964), que extraí os versos do soneto abaixo, em sua pág. 262.
LÍNGUA PORTUGUESA
Olavo Bilac
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
quinta-feira, 5 de maio de 2011
8 de março: - um dia internacional para as Mariazinhas
Convidaram-me a sugerir um nome de mulher, para ser homenageada na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, pela passagem do Dia Internacional da Mulher. Desculpe-me, Mariazinha, pensei em ti.
Pensei em ti porque me lembrei que súbito, da mente imunda daquela besta insensível, a gravidez precoce, indesejada, nem sequer pensada ou sabida, despencou-se sobre tua vida, fazendo inflar teu ventre, já dilatado de farinha e verminoses. Aos nove anos, nem chegaste a ouvir o chocalho da serpente que anuncia os perigos do mundo, e já fostes picada por ela, de forma irreversível, entrando definitivamente para a estatística oficial de dados do governo. Não te preocupes, lá teu nome não aparece, és apenas um número, um número falso, tão pequeno que nem preocupa a sociedade.
Mas há outro mundo, minha pequena, um mundo onde crianças de tua idade, ainda brincam de bonecas, e como o pequeno príncipe, ainda sonham plantar rosas no deserto. Mas aqui, nestas ruas pobres e desertas deste Ceará que conheces, onde de nenhuma mudança te falaram, não encontraste nenhuma ponte para o futuro, mas apenas as pontes para o abismo onde te encontras. Nenhum pequeno príncipe plantou, achou ou colheu rosa nenhuma. Somente tu e outras crianças pobres, foram plantadas entre as pedras toscas deste calçamento. És agora, semente e adubo. És rosa banhada no sangue de outras crianças pobres que se foram, vítimas de violências, como tu és agora. És uma rosa-bússola, poderás servir de rosa-rota para que pessoas de bem, te vejam como rosa-luz no fim do túnel, iniciando um processo de redenção de crianças como tu. Um dia, minha pequena, talvez já nem estejas mais aqui, serás rosa-ninho, serás uma rosa-canção, anunciando a outras meninas a rosa-liberdade, a rosa-amor, a rosa-lua, a rosa-utopia, a rosa-caminho.
Mas são irônicas as páginas desta vida. As mesmas pessoas que tem obrigação de legislar para ti, cuidar de ti, mas te viram as costas, querem na grande casa do povo, homenagear a mulher, pela passagem do seu dia internacional. És a mulher ideal para ser homenageada. Mulher-menina, menina-mãe, mãe abandonada, reúnes tudo para seres merecedora da homenagem. Representas as meninas, as mulheres, as mães desta América Latina abandonada, desta nossa Pátria Grande., que ainda morrem de parto, pneumonia, fome, diarreia. Representas as meninas, as mulheres, as mães da Mama África, morrendo das mesmas misérias, de malária, tifo, AIDS. Mas não serás a homenageada. Há mulheres brancas, ricas, perfumadas, com extensos currículos de obras e serviços prestados a ti, que estarão lá, em teu lugar, sobre tapetes vermelhos, entre champanhe e caviar, recebendo prêmios, homenagens e prometendo que continuarão a lutar por ti, nas mil frentes e Fóruns de Alguma Coisa, ou de Coisa Nenhuma, que criam para desviar o dinheiro público, de programas assistenciais que te pertencem. Doce ironia! Foi muito, sonhar com a tua presença nos salões luxuosos da Assembleia Legislativa, com tua face terrosa, teus braços finos, esta pasmaceira, fruto de mais de quinhentos anos de abandono e indigência. A maioria fingiu que não viu teu nome entre as candidatas.
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda, até que esta sociedade entenda, que toda a violência que se abate hoje, sobre o Rio de Janeiro em chamas, deve-se ao abandono e falta de políticas públicas para a criança, em um processo que teve início há trinta, quarenta ou quinhentos anos atrás? Lembro-me do último ditador, na década de 80, contemplando do asfalto a favela da Rocinha, grasnando para a sua assessoria: “quando esta favela invadir o asfalto, não haverá canhão que a segure...” Triste profecia, que hoje se realiza. Quem sabe, estamos gerando hoje, em teu ventre, um futuro Raimundinho Beira-Mar? E seria tão fácil evitar. Evitar sem aborto, mas com políticas públicas.
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda, até que possamos parar em um semáforo de Fortaleza, sem que se aproxime, minha pequena, uma menina como tu, grávida, ou com sua latinha de cola, mãos estendidas, a exigir esmolas, com um duro olhar de adulto sofrido?
E como é duro, pequena, saber que não és a única. Há pouco, outra como tu, passou por isto. Mais grave, na tua idade, ela que era portadora de uma síndrome qualquer, talvez nem mesmo diagnosticada, surda e muda, a boca torta, os braços saudosos da posição fetal, tentando falar de sua angústia, em sons afásicos, fazendo com que muitos olhassem para o outro lado, como se não a estivessem vendo, ela também amanheceu grávida, às vésperas de um dia internacional de qualquer coisa. Seu filho está aí. Foi parido na rua, numa lua nova, surgiu natimorto, destinado a morrer no primeiro ano de vida, mas de pura teimosia, sobreviveu. Sobreviveu contorcendo-se nos ataques epilépticos. Faminto. Crescendo para repetir no futuro a mesma terrível mímica do seu passado. Filho de um pai que não o assumiu, apesar do bom nível social, bom emprego, mas que numa noite qualquer, deslocou os ossos de uma criança esquálida e doente, para ter com ela um breve ato de prazer animal. E aí está ele, solto, beneficiado pela venda que a mãe justiça usa nos olhos, impedindo-a de ver as mazelas que assediam as meninas pobres.
Infelizmente, pequena, tu e ela, tiveram o azar de serem concebidas de sementes enfraquecidas por endemias e carências, em lares pobres, mesmo em uma nação rica e com potencial. E estás aí hoje, carregando pelas ruas, fora da escola, todas as avitaminoses, vermes intestinais, tuas crônicas dores de dentes, lutando por um prato sem proteínas, indigna de estares nas festas do legislativo.
No ano que vem, talvez compadecida, esta sociedade te convide. Aí já não poderás ir. Estará cuidando de teu rebento, febril, arrastando-se pelo chão de terra batida de teu barraco, disputando vagas com os insetos, sobre os próprios excrementos.
E por que luto por ti? O que posso fazer por ti, quando acima de mim, muito acima de mim, pairam forças satânicas, que tendo nas mãos o poder de fazer por ti, nada fazem? Quando muito acima desta forças, pairam outras maiores, cujo fragílimo equilíbrio, reside na sua própria força de destruição. Forças, que por excesso de tensão, podem desencadear um átomo, a qualquer instante, pondo um fim também precoce ao teu sofrimento, livrando-te do fim natural que tiveram teus antepassados, mortos por um nó nas tripas, uma barriga d’água e outras mazelas populares que disfarçam o câncer, a ruptura da hérnia, a úlcera gástrica, a cirrose hepática, que o SUS, o Saúde na Família não trataram. Mas deixarás tua filha, para seguir teus passos. Barrada nos salões nobres da casa do povo. Vendendo na beira da estrada, a pele frouxa e os seios caídos, para sustentar a prole. Gente sem história.
Talvez eu lute, e sei que não estou só, para que saibas de onde viestes, porque estás aqui, para onde vais. Para que tua vida não se acabe em vão, sem que os poderosos sequer lembrem-se de ti. Neste 8 de março, minha pequena, tu não estarás nas homenagens à mulher, nos salões da Assembleia Legislativa. Eu Também não. Estarei contigo, afagando teus cabelos, no chão do teu barraco, cobrindo-a com um plástico, para proteger-te da água da chuva, que teima em cair dentro da sala, ultrapassando o telhado de palhas. Estarei contigo, ninando-te para dormires, acariciando teu ventre que agasalha a vida. Parabéns mulher, hoje é teu dia.
Quimeras - 08/03/2003
Convidaram-me a sugerir um nome de mulher, para ser homenageada na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, pela passagem do Dia Internacional da Mulher. Desculpe-me, Mariazinha, pensei em ti.
Pensei em ti porque me lembrei que súbito, da mente imunda daquela besta insensível, a gravidez precoce, indesejada, nem sequer pensada ou sabida, despencou-se sobre tua vida, fazendo inflar teu ventre, já dilatado de farinha e verminoses. Aos nove anos, nem chegaste a ouvir o chocalho da serpente que anuncia os perigos do mundo, e já fostes picada por ela, de forma irreversível, entrando definitivamente para a estatística oficial de dados do governo. Não te preocupes, lá teu nome não aparece, és apenas um número, um número falso, tão pequeno que nem preocupa a sociedade.
Mas há outro mundo, minha pequena, um mundo onde crianças de tua idade, ainda brincam de bonecas, e como o pequeno príncipe, ainda sonham plantar rosas no deserto. Mas aqui, nestas ruas pobres e desertas deste Ceará que conheces, onde de nenhuma mudança te falaram, não encontraste nenhuma ponte para o futuro, mas apenas as pontes para o abismo onde te encontras. Nenhum pequeno príncipe plantou, achou ou colheu rosa nenhuma. Somente tu e outras crianças pobres, foram plantadas entre as pedras toscas deste calçamento. És agora, semente e adubo. És rosa banhada no sangue de outras crianças pobres que se foram, vítimas de violências, como tu és agora. És uma rosa-bússola, poderás servir de rosa-rota para que pessoas de bem, te vejam como rosa-luz no fim do túnel, iniciando um processo de redenção de crianças como tu. Um dia, minha pequena, talvez já nem estejas mais aqui, serás rosa-ninho, serás uma rosa-canção, anunciando a outras meninas a rosa-liberdade, a rosa-amor, a rosa-lua, a rosa-utopia, a rosa-caminho.
Mas são irônicas as páginas desta vida. As mesmas pessoas que tem obrigação de legislar para ti, cuidar de ti, mas te viram as costas, querem na grande casa do povo, homenagear a mulher, pela passagem do seu dia internacional. És a mulher ideal para ser homenageada. Mulher-menina, menina-mãe, mãe abandonada, reúnes tudo para seres merecedora da homenagem. Representas as meninas, as mulheres, as mães desta América Latina abandonada, desta nossa Pátria Grande., que ainda morrem de parto, pneumonia, fome, diarreia. Representas as meninas, as mulheres, as mães da Mama África, morrendo das mesmas misérias, de malária, tifo, AIDS. Mas não serás a homenageada. Há mulheres brancas, ricas, perfumadas, com extensos currículos de obras e serviços prestados a ti, que estarão lá, em teu lugar, sobre tapetes vermelhos, entre champanhe e caviar, recebendo prêmios, homenagens e prometendo que continuarão a lutar por ti, nas mil frentes e Fóruns de Alguma Coisa, ou de Coisa Nenhuma, que criam para desviar o dinheiro público, de programas assistenciais que te pertencem. Doce ironia! Foi muito, sonhar com a tua presença nos salões luxuosos da Assembleia Legislativa, com tua face terrosa, teus braços finos, esta pasmaceira, fruto de mais de quinhentos anos de abandono e indigência. A maioria fingiu que não viu teu nome entre as candidatas.
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda, até que esta sociedade entenda, que toda a violência que se abate hoje, sobre o Rio de Janeiro em chamas, deve-se ao abandono e falta de políticas públicas para a criança, em um processo que teve início há trinta, quarenta ou quinhentos anos atrás? Lembro-me do último ditador, na década de 80, contemplando do asfalto a favela da Rocinha, grasnando para a sua assessoria: “quando esta favela invadir o asfalto, não haverá canhão que a segure...” Triste profecia, que hoje se realiza. Quem sabe, estamos gerando hoje, em teu ventre, um futuro Raimundinho Beira-Mar? E seria tão fácil evitar. Evitar sem aborto, mas com políticas públicas.
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda, até que possamos parar em um semáforo de Fortaleza, sem que se aproxime, minha pequena, uma menina como tu, grávida, ou com sua latinha de cola, mãos estendidas, a exigir esmolas, com um duro olhar de adulto sofrido?
E como é duro, pequena, saber que não és a única. Há pouco, outra como tu, passou por isto. Mais grave, na tua idade, ela que era portadora de uma síndrome qualquer, talvez nem mesmo diagnosticada, surda e muda, a boca torta, os braços saudosos da posição fetal, tentando falar de sua angústia, em sons afásicos, fazendo com que muitos olhassem para o outro lado, como se não a estivessem vendo, ela também amanheceu grávida, às vésperas de um dia internacional de qualquer coisa. Seu filho está aí. Foi parido na rua, numa lua nova, surgiu natimorto, destinado a morrer no primeiro ano de vida, mas de pura teimosia, sobreviveu. Sobreviveu contorcendo-se nos ataques epilépticos. Faminto. Crescendo para repetir no futuro a mesma terrível mímica do seu passado. Filho de um pai que não o assumiu, apesar do bom nível social, bom emprego, mas que numa noite qualquer, deslocou os ossos de uma criança esquálida e doente, para ter com ela um breve ato de prazer animal. E aí está ele, solto, beneficiado pela venda que a mãe justiça usa nos olhos, impedindo-a de ver as mazelas que assediam as meninas pobres.
Infelizmente, pequena, tu e ela, tiveram o azar de serem concebidas de sementes enfraquecidas por endemias e carências, em lares pobres, mesmo em uma nação rica e com potencial. E estás aí hoje, carregando pelas ruas, fora da escola, todas as avitaminoses, vermes intestinais, tuas crônicas dores de dentes, lutando por um prato sem proteínas, indigna de estares nas festas do legislativo.
No ano que vem, talvez compadecida, esta sociedade te convide. Aí já não poderás ir. Estará cuidando de teu rebento, febril, arrastando-se pelo chão de terra batida de teu barraco, disputando vagas com os insetos, sobre os próprios excrementos.
E por que luto por ti? O que posso fazer por ti, quando acima de mim, muito acima de mim, pairam forças satânicas, que tendo nas mãos o poder de fazer por ti, nada fazem? Quando muito acima desta forças, pairam outras maiores, cujo fragílimo equilíbrio, reside na sua própria força de destruição. Forças, que por excesso de tensão, podem desencadear um átomo, a qualquer instante, pondo um fim também precoce ao teu sofrimento, livrando-te do fim natural que tiveram teus antepassados, mortos por um nó nas tripas, uma barriga d’água e outras mazelas populares que disfarçam o câncer, a ruptura da hérnia, a úlcera gástrica, a cirrose hepática, que o SUS, o Saúde na Família não trataram. Mas deixarás tua filha, para seguir teus passos. Barrada nos salões nobres da casa do povo. Vendendo na beira da estrada, a pele frouxa e os seios caídos, para sustentar a prole. Gente sem história.
Talvez eu lute, e sei que não estou só, para que saibas de onde viestes, porque estás aqui, para onde vais. Para que tua vida não se acabe em vão, sem que os poderosos sequer lembrem-se de ti. Neste 8 de março, minha pequena, tu não estarás nas homenagens à mulher, nos salões da Assembleia Legislativa. Eu Também não. Estarei contigo, afagando teus cabelos, no chão do teu barraco, cobrindo-a com um plástico, para proteger-te da água da chuva, que teima em cair dentro da sala, ultrapassando o telhado de palhas. Estarei contigo, ninando-te para dormires, acariciando teu ventre que agasalha a vida. Parabéns mulher, hoje é teu dia.
Quimeras - 08/03/2003
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segunda-feira, 2 de maio de 2011
Qual é a causa porque o teu milho não espiga?
Tenho um amigo, padre italiano, muito progressista, que depois de muitos anos radicado numa comunidade pobre de Fortaleza, o Conjunto Palmeiras, mudou-se para o Timor Leste onde reside há alguns anos. Neste mês de junho vivemos mais um ano sem o Pe. Chico Moser.
Perdemos no Ceará, um companheiro de muitas lutas. O único que tinha "peito" para me acompanhar nas incursões que eu fazia às pedreiras dos poderosos para flagramos a exploração da mão-de-obra infantil.
Mas aquele "povo baixinho amorenado" do Timor Leste ganhou um grande aliado em sua luta. Um aliado forte, radical, destemido que estará com eles para fazer espigar seu milho, florescer seu arroz, entender a causa do seu suor sem fim...
Vejam a poesia do relato que ele enviou de lá:
QUANDO O ARROZ FLORESCER...
"Qual é a causa porque o teu milho não espiga? Qual é a causa porque o teu arroz não floresce? Qual é a causa da tua fome? Qual è a causa do teu suor sem fim?"
(Kolele Mai Fco. Borges da Costa)
A resposta do poeta timorense , no poema acima , estava implícita: era o colonialismo. Ele mesmo morreu baleado no primeiro dia da invasão da Indonésia, 7 de dezembro de 1975. O mundo estava ocupado e distraído com a derrota no Vietnam. Estou finalmente em Timor Leste. Moro em Dili, a maior das cidades, quase 200.000 habitantes. Um belíssimo porto. Atrás as montanhas. Timor, terra ainda desconhecida à industria turística. É uma questão de tempo, porque tem belezas e cores para dar e mostrar.
Todo dia saio de manhã, cedinho. Voltei a estudar em tempos de aposentadoria. Mergulhei no estudo do Tètun, umas das 42 línguas. A juventude foi obrigada a aprender a língua do ocupante (o bahatsa). A política era apagar as línguas, destruir a resistência, "substituir" o povo timorense com as famosas "transferências" forcadas. Há dois anos, desde 20 de maio de 2002, o povo desta ilha resistente tenta subir a ladeira da justiça, da dignidade. 50% é juventude. Existem em Dili 7 pequenas universidades. Numa delas, que eu conheço, estudam 3.000 jovens todo dia. A cidade é mais parecida com um grande acampamento. Cidade de muitos "malai", assim os nativos chamam os estrangeiros. São padrões de vida diferentes.
Para os de fora, supermercados e mercadorias a preço de dólar. Os Timorenses, empobrecidos e estressados pela guerra, vivem, na maioria, abaixo do nível da pobreza. Sabe-se que o modelo ocidental, recolher dinheiro no mundo para pagar aqui os técnicos dos países ricos, tem custado demais. Os militares dos capacetes azuis da ONU estão retirando-se devagar porque ainda há perigos nas esquinas. Participei de uma jornada sobre saúde e pastoral da saúde, com gente de toda a ilha e foi surpresa agradável a qualidade dos debates e da reflexão.
Recuperar a saúde individual e coletiva é um desafio urgente. A cidade está renascendo lentamente. Impressiona a quantidade de prédios e construções carbonizadas, antigos hotéis, repartições públicas, inclusive a casa de dom Belo, o bispo Nobel da Paz, tudo ardeu durante 15 dias, quando as milícias e os militares indonésios se retiraram, assassinando, queimando e destruindo. O pesadelo e o horror permanecem no inconsciente.
Comissões "pela verdade e pela reconciliação" trabalham há 4 anos. Esse ano serão publicados os relatórios. Mas, os dois generais que comandaram as operações de extermínio, serão candidatos às eleições no dia 02 de julho próximo. Acompanhem! O povo cala, parece tímido, mas è porque ainda não confia. Pouco a pouco as estruturas e os serviços são reconstruídos.
Mais difícil é recompor a vida, as relações feridas.
Aqui, tudo se encontra. Todos os povos, ONGs, UM, Organizações trabalham. A queixa é grande em relação à distancia desses técnicos da vida real, humilde desse povo "baixinho, amorenado". Crianças e jovens, de uma beleza encantadora, sorriem largamente e cumprimentam. A Igreja Católica teve papel histórico grandioso na época da ocupação. É, porém, uma Igreja que não conheceu o concílio Vaticano II, Igreja Povo de Deus, comunidades de base. Há poder concentrado nas Congregações presentes.
Cuidam um pouco de si mesmas, não marcam presença ativa junto aos sofredores: constatação feita pelo novo Bispo de Dili, na Sagração no dia 02 de maio passado, diante de 20.000 pessoas em bonita celebração campal.
Há esperança, há confiança nas lideranças que foram, durante tanto tempo, à luta da independência. A natalidade é elevada. Nascem muitas crianças, mesmo em contextos de risco e fragilidade. São muitas tarefas ao mesmo tempo. Cuidar da vida "ferida como esta", na palavra do Zé Vicente.
Caminho pelas ruas, reconheço os sinais da realidade urbana, a lógica da exclusão aumentando: turmas de crianças pedindo esmola, perambulando em pequenos bandos, o lixo e os esgotos a céu aberto. A informação é pouca, os jornais começam a circular, um canal de TV, algumas rádios. Luz elétrica racionada. Isto na cidade porque na serra distante onde vivem antigas populações e onde trabalham duas equipes de irmãs brasileiras, existe um gerador parado por falta de combustível e as comunicações não existem, a não ser a rádio de emergência da policia.
O campo de trabalho é grande.
Penso por onde deve andar o caminho da missão. Penso no grão de mostarda que está crescendo, na força extraordinária desses enfraquecidos e encurvados sob o peso que carregam. Admiro algumas dezenas de pessoas que eu conheci (e quem sabe quantas mais?). Tecelãs e tecelões de um dia novo.
Ficou um povo de viúvas e órfãos, de deslocados e traumatizados. Mas é um povo que herdou o gosto da festa: cantam bonito, gostam de corais.
Nós, das comunidades brasileiras, temos belas experiências a contar, mas timorense capricha no canto, na liturgia, na dimensão da alegria. É um contrapeso importante.
Ligar missão e cura, contatos humanos frequentes, ver a possibilidade de estender pequenas redes de comunidades urbanas, como estações da Vida ou pontos de encontro. Caminho apressadamente pelas ruas, olho e gravo as pichações ainda intactas da guerra, em tètun, em português e em bahtsa: há um quê de ameaça nessas frases. Ninguém as apagou. Como os prédios, às centenas, chamuscados, queimados. Precisa de tempo. A memória das vitimas (mais de 200.000) está ainda viva nas mentes e corações. Uma amiga, antes de partir, na Messejana, me colocou em crise, dizendo: "Vale a pena ir tão longe"?
A resposta provisória é mais ou menos assim: "Talvez demorei demais".
Timor Leste, "Lorosa" (o Sol que levanta). É o primeiro país que o Sol vê, ao surgir, toda manhã . Outro dia me despedi da repórter de guerra Rosely Forganes, paulista, que escreveu "QUEIMADO, QUEIMADO, MAS AGORA NOSSO".
Vale a pena ler algo novo. Algo sempre está acontecendo, um pouco mais ao leste, para um leste mais distante.
Amanhã, em Dili.
Junho de 2004.
Tenho um amigo, padre italiano, muito progressista, que depois de muitos anos radicado numa comunidade pobre de Fortaleza, o Conjunto Palmeiras, mudou-se para o Timor Leste onde reside há alguns anos. Neste mês de junho vivemos mais um ano sem o Pe. Chico Moser.
Perdemos no Ceará, um companheiro de muitas lutas. O único que tinha "peito" para me acompanhar nas incursões que eu fazia às pedreiras dos poderosos para flagramos a exploração da mão-de-obra infantil.
Mas aquele "povo baixinho amorenado" do Timor Leste ganhou um grande aliado em sua luta. Um aliado forte, radical, destemido que estará com eles para fazer espigar seu milho, florescer seu arroz, entender a causa do seu suor sem fim...
Vejam a poesia do relato que ele enviou de lá:
QUANDO O ARROZ FLORESCER...
"Qual é a causa porque o teu milho não espiga? Qual é a causa porque o teu arroz não floresce? Qual é a causa da tua fome? Qual è a causa do teu suor sem fim?"
(Kolele Mai Fco. Borges da Costa)
A resposta do poeta timorense , no poema acima , estava implícita: era o colonialismo. Ele mesmo morreu baleado no primeiro dia da invasão da Indonésia, 7 de dezembro de 1975. O mundo estava ocupado e distraído com a derrota no Vietnam. Estou finalmente em Timor Leste. Moro em Dili, a maior das cidades, quase 200.000 habitantes. Um belíssimo porto. Atrás as montanhas. Timor, terra ainda desconhecida à industria turística. É uma questão de tempo, porque tem belezas e cores para dar e mostrar.
Todo dia saio de manhã, cedinho. Voltei a estudar em tempos de aposentadoria. Mergulhei no estudo do Tètun, umas das 42 línguas. A juventude foi obrigada a aprender a língua do ocupante (o bahatsa). A política era apagar as línguas, destruir a resistência, "substituir" o povo timorense com as famosas "transferências" forcadas. Há dois anos, desde 20 de maio de 2002, o povo desta ilha resistente tenta subir a ladeira da justiça, da dignidade. 50% é juventude. Existem em Dili 7 pequenas universidades. Numa delas, que eu conheço, estudam 3.000 jovens todo dia. A cidade é mais parecida com um grande acampamento. Cidade de muitos "malai", assim os nativos chamam os estrangeiros. São padrões de vida diferentes.
Para os de fora, supermercados e mercadorias a preço de dólar. Os Timorenses, empobrecidos e estressados pela guerra, vivem, na maioria, abaixo do nível da pobreza. Sabe-se que o modelo ocidental, recolher dinheiro no mundo para pagar aqui os técnicos dos países ricos, tem custado demais. Os militares dos capacetes azuis da ONU estão retirando-se devagar porque ainda há perigos nas esquinas. Participei de uma jornada sobre saúde e pastoral da saúde, com gente de toda a ilha e foi surpresa agradável a qualidade dos debates e da reflexão.
Recuperar a saúde individual e coletiva é um desafio urgente. A cidade está renascendo lentamente. Impressiona a quantidade de prédios e construções carbonizadas, antigos hotéis, repartições públicas, inclusive a casa de dom Belo, o bispo Nobel da Paz, tudo ardeu durante 15 dias, quando as milícias e os militares indonésios se retiraram, assassinando, queimando e destruindo. O pesadelo e o horror permanecem no inconsciente.
Comissões "pela verdade e pela reconciliação" trabalham há 4 anos. Esse ano serão publicados os relatórios. Mas, os dois generais que comandaram as operações de extermínio, serão candidatos às eleições no dia 02 de julho próximo. Acompanhem! O povo cala, parece tímido, mas è porque ainda não confia. Pouco a pouco as estruturas e os serviços são reconstruídos.
Mais difícil é recompor a vida, as relações feridas.
Aqui, tudo se encontra. Todos os povos, ONGs, UM, Organizações trabalham. A queixa é grande em relação à distancia desses técnicos da vida real, humilde desse povo "baixinho, amorenado". Crianças e jovens, de uma beleza encantadora, sorriem largamente e cumprimentam. A Igreja Católica teve papel histórico grandioso na época da ocupação. É, porém, uma Igreja que não conheceu o concílio Vaticano II, Igreja Povo de Deus, comunidades de base. Há poder concentrado nas Congregações presentes.
Cuidam um pouco de si mesmas, não marcam presença ativa junto aos sofredores: constatação feita pelo novo Bispo de Dili, na Sagração no dia 02 de maio passado, diante de 20.000 pessoas em bonita celebração campal.
Há esperança, há confiança nas lideranças que foram, durante tanto tempo, à luta da independência. A natalidade é elevada. Nascem muitas crianças, mesmo em contextos de risco e fragilidade. São muitas tarefas ao mesmo tempo. Cuidar da vida "ferida como esta", na palavra do Zé Vicente.
Caminho pelas ruas, reconheço os sinais da realidade urbana, a lógica da exclusão aumentando: turmas de crianças pedindo esmola, perambulando em pequenos bandos, o lixo e os esgotos a céu aberto. A informação é pouca, os jornais começam a circular, um canal de TV, algumas rádios. Luz elétrica racionada. Isto na cidade porque na serra distante onde vivem antigas populações e onde trabalham duas equipes de irmãs brasileiras, existe um gerador parado por falta de combustível e as comunicações não existem, a não ser a rádio de emergência da policia.
O campo de trabalho é grande.
Penso por onde deve andar o caminho da missão. Penso no grão de mostarda que está crescendo, na força extraordinária desses enfraquecidos e encurvados sob o peso que carregam. Admiro algumas dezenas de pessoas que eu conheci (e quem sabe quantas mais?). Tecelãs e tecelões de um dia novo.
Ficou um povo de viúvas e órfãos, de deslocados e traumatizados. Mas é um povo que herdou o gosto da festa: cantam bonito, gostam de corais.
Nós, das comunidades brasileiras, temos belas experiências a contar, mas timorense capricha no canto, na liturgia, na dimensão da alegria. É um contrapeso importante.
Ligar missão e cura, contatos humanos frequentes, ver a possibilidade de estender pequenas redes de comunidades urbanas, como estações da Vida ou pontos de encontro. Caminho apressadamente pelas ruas, olho e gravo as pichações ainda intactas da guerra, em tètun, em português e em bahtsa: há um quê de ameaça nessas frases. Ninguém as apagou. Como os prédios, às centenas, chamuscados, queimados. Precisa de tempo. A memória das vitimas (mais de 200.000) está ainda viva nas mentes e corações. Uma amiga, antes de partir, na Messejana, me colocou em crise, dizendo: "Vale a pena ir tão longe"?
A resposta provisória é mais ou menos assim: "Talvez demorei demais".
Timor Leste, "Lorosa" (o Sol que levanta). É o primeiro país que o Sol vê, ao surgir, toda manhã . Outro dia me despedi da repórter de guerra Rosely Forganes, paulista, que escreveu "QUEIMADO, QUEIMADO, MAS AGORA NOSSO".
Vale a pena ler algo novo. Algo sempre está acontecendo, um pouco mais ao leste, para um leste mais distante.
Amanhã, em Dili.
Junho de 2004.
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