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quinta-feira, 5 de maio de 2011

8 de março: - um dia internacional para as Mariazinhas


Convidaram-me a sugerir um nome de mulher, para ser homenageada na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, pela passagem do Dia Internacional da Mulher. Desculpe-me, Mariazinha, pensei em ti.
Pensei em ti porque me lembrei que súbito, da mente imunda daquela besta insensível, a gravidez precoce, indesejada, nem sequer pensada ou sabida, despencou-se sobre tua vida, fazendo inflar teu ventre, já dilatado de farinha e verminoses. Aos nove anos, nem chegaste a ouvir o chocalho da serpente que anuncia os perigos do mundo, e já fostes picada por ela, de forma irreversível, entrando definitivamente para a estatística oficial de dados do governo. Não te preocupes, lá teu nome não aparece, és apenas um número, um número falso, tão pequeno que nem preocupa a sociedade.
Mas há outro mundo, minha pequena, um mundo onde crianças de tua idade, ainda brincam de bonecas, e como o pequeno príncipe, ainda sonham plantar rosas no deserto. Mas aqui, nestas ruas pobres e desertas deste Ceará que conheces, onde de nenhuma mudança te falaram, não encontraste nenhuma ponte para o futuro, mas apenas as pontes para o abismo onde te encontras. Nenhum pequeno príncipe plantou, achou ou colheu rosa nenhuma. Somente tu e outras crianças pobres, foram plantadas entre as pedras toscas deste calçamento. És agora, semente e adubo. És rosa banhada no sangue de outras crianças pobres que se foram, vítimas de violências, como tu és agora. És uma rosa-bússola, poderás servir de rosa-rota para que pessoas de bem, te vejam como rosa-luz no fim do túnel, iniciando um processo de redenção de crianças como tu. Um dia, minha pequena, talvez já nem estejas mais aqui, serás rosa-ninho, serás uma rosa-canção, anunciando a outras meninas a rosa-liberdade, a rosa-amor, a rosa-lua, a rosa-utopia, a rosa-caminho.
Mas são irônicas as páginas desta vida. As mesmas pessoas que tem obrigação de legislar para ti, cuidar de ti, mas te viram as costas, querem na grande casa do povo, homenagear a mulher, pela passagem do seu dia internacional. És a mulher ideal para ser homenageada. Mulher-menina, menina-mãe, mãe abandonada, reúnes tudo para seres merecedora da homenagem. Representas as meninas, as mulheres, as mães desta América Latina abandonada, desta nossa Pátria Grande., que ainda morrem de parto, pneumonia, fome, diarreia. Representas as meninas, as mulheres, as mães da Mama África, morrendo das mesmas misérias, de malária, tifo, AIDS. Mas não serás a homenageada. Há mulheres brancas, ricas, perfumadas, com extensos currículos de obras e serviços prestados a ti, que estarão lá, em teu lugar, sobre tapetes vermelhos, entre champanhe e caviar, recebendo prêmios, homenagens e prometendo que continuarão a lutar por ti, nas mil frentes e Fóruns de Alguma Coisa, ou de Coisa Nenhuma, que criam para desviar o dinheiro público, de programas assistenciais que te pertencem. Doce ironia! Foi muito, sonhar com a tua presença nos salões luxuosos da Assembleia Legislativa, com tua face terrosa, teus braços finos, esta pasmaceira, fruto de mais de quinhentos anos de abandono e indigência. A maioria fingiu que não viu teu nome entre as candidatas.
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda, até que esta sociedade entenda, que toda a violência que se abate hoje, sobre o Rio de Janeiro em chamas, deve-se ao abandono e falta de políticas públicas para a criança, em um processo que teve início há trinta, quarenta ou quinhentos anos atrás? Lembro-me do último ditador, na década de 80, contemplando do asfalto a favela da Rocinha, grasnando para a sua assessoria: “quando esta favela invadir o asfalto, não haverá canhão que a segure...” Triste profecia, que hoje se realiza. Quem sabe, estamos gerando hoje, em teu ventre, um futuro Raimundinho Beira-Mar? E seria tão fácil evitar. Evitar sem aborto, mas com políticas públicas.
Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda, até que possamos parar em um semáforo de Fortaleza, sem que se aproxime, minha pequena, uma menina como tu, grávida, ou com sua latinha de cola, mãos estendidas, a exigir esmolas, com um duro olhar de adulto sofrido?
E como é duro, pequena, saber que não és a única. Há pouco, outra como tu, passou por isto. Mais grave, na tua idade, ela que era portadora de uma síndrome qualquer, talvez nem mesmo diagnosticada, surda e muda, a boca torta, os braços saudosos da posição fetal, tentando falar de sua angústia, em sons afásicos, fazendo com que muitos olhassem para o outro lado, como se não a estivessem vendo, ela também amanheceu grávida, às vésperas de um dia internacional de qualquer coisa. Seu filho está aí. Foi parido na rua, numa lua nova, surgiu natimorto, destinado a morrer no primeiro ano de vida, mas de pura teimosia, sobreviveu. Sobreviveu contorcendo-se nos ataques epilépticos. Faminto. Crescendo para repetir no futuro a mesma terrível mímica do seu passado. Filho de um pai que não o assumiu, apesar do bom nível social, bom emprego, mas que numa noite qualquer, deslocou os ossos de uma criança esquálida e doente, para ter com ela um breve ato de prazer animal. E aí está ele, solto, beneficiado pela venda que a mãe justiça usa nos olhos, impedindo-a de ver as mazelas que assediam as meninas pobres.
Infelizmente, pequena, tu e ela, tiveram o azar de serem concebidas de sementes enfraquecidas por endemias e carências, em lares pobres, mesmo em uma nação rica e com potencial. E estás aí hoje, carregando pelas ruas, fora da escola, todas as avitaminoses, vermes intestinais, tuas crônicas dores de dentes, lutando por um prato sem proteínas, indigna de estares nas festas do legislativo.
No ano que vem, talvez compadecida, esta sociedade te convide. Aí já não poderás ir. Estará cuidando de teu rebento, febril, arrastando-se pelo chão de terra batida de teu barraco, disputando vagas com os insetos, sobre os próprios excrementos.
E por que luto por ti? O que posso fazer por ti, quando acima de mim, muito acima de mim, pairam forças satânicas, que tendo nas mãos o poder de fazer por ti, nada fazem? Quando muito acima desta forças, pairam outras maiores, cujo fragílimo equilíbrio, reside na sua própria força de destruição. Forças, que por excesso de tensão, podem desencadear um átomo, a qualquer instante, pondo um fim também precoce ao teu sofrimento, livrando-te do fim natural que tiveram teus antepassados, mortos por um nó nas tripas, uma barriga d’água e outras mazelas populares que disfarçam o câncer, a ruptura da hérnia, a úlcera gástrica, a cirrose hepática, que o SUS, o Saúde na Família não trataram. Mas deixarás tua filha, para seguir teus passos. Barrada nos salões nobres da casa do povo. Vendendo na beira da estrada, a pele frouxa e os seios caídos, para sustentar a prole. Gente sem história.
Talvez eu lute, e sei que não estou só, para que saibas de onde viestes, porque estás aqui, para onde vais. Para que tua vida não se acabe em vão, sem que os poderosos sequer lembrem-se de ti. Neste 8 de março, minha pequena, tu não estarás nas homenagens à mulher, nos salões da Assembleia Legislativa. Eu Também não. Estarei contigo, afagando teus cabelos, no chão do teu barraco, cobrindo-a com um plástico, para proteger-te da água da chuva, que teima em cair dentro da sala, ultrapassando o telhado de palhas. Estarei contigo, ninando-te para dormires, acariciando teu ventre que agasalha a vida. Parabéns mulher, hoje é teu dia.
Quimeras - 08/03/2003

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