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segunda-feira, 2 de maio de 2011

Qual é a causa porque o teu milho não espiga?


Tenho um amigo, padre italiano, muito progressista, que depois de muitos anos radicado numa comunidade pobre de Fortaleza, o Conjunto Palmeiras, mudou-se para o Timor Leste onde reside há alguns anos. Neste mês de junho vivemos mais um ano sem o Pe. Chico Moser.

Perdemos no Ceará, um companheiro de muitas lutas. O único que tinha "peito" para me acompanhar nas incursões que eu fazia às pedreiras dos poderosos para flagramos a exploração da mão-de-obra infantil.

Mas aquele "povo baixinho amorenado" do Timor Leste ganhou um grande aliado em sua luta. Um aliado forte, radical, destemido que estará com eles para fazer espigar seu milho, florescer seu arroz, entender a causa do seu suor sem fim...

Vejam a poesia do relato que ele enviou de lá:

QUANDO O ARROZ FLORESCER...

"Qual é a causa porque o teu milho não espiga? Qual é a causa porque o teu arroz não floresce? Qual é a causa da tua fome? Qual è a causa do teu suor sem fim?"
(Kolele Mai Fco. Borges da Costa)

A resposta do poeta timorense , no poema acima , estava implícita: era o colonialismo. Ele mesmo morreu baleado no primeiro dia da invasão da Indonésia, 7 de dezembro de 1975. O mundo estava ocupado e distraído com a derrota no Vietnam. Estou finalmente em Timor Leste. Moro em Dili, a maior das cidades, quase 200.000 habitantes. Um belíssimo porto. Atrás as montanhas. Timor, terra ainda desconhecida à industria turística. É uma questão de tempo, porque tem belezas e cores para dar e mostrar.

Todo dia saio de manhã, cedinho. Voltei a estudar em tempos de aposentadoria. Mergulhei no estudo do Tètun, umas das 42 línguas. A juventude foi obrigada a aprender a língua do ocupante (o bahatsa). A política era apagar as línguas, destruir a resistência, "substituir" o povo timorense com as famosas "transferências" forcadas. Há dois anos, desde 20 de maio de 2002, o povo desta ilha resistente tenta subir a ladeira da justiça, da dignidade. 50% é juventude. Existem em Dili 7 pequenas universidades. Numa delas, que eu conheço, estudam 3.000 jovens todo dia. A cidade é mais parecida com um grande acampamento. Cidade de muitos "malai", assim os nativos chamam os estrangeiros. São padrões de vida diferentes.

Para os de fora, supermercados e mercadorias a preço de dólar. Os Timorenses, empobrecidos e estressados pela guerra, vivem, na maioria, abaixo do nível da pobreza. Sabe-se que o modelo ocidental, recolher dinheiro no mundo para pagar aqui os técnicos dos países ricos, tem custado demais. Os militares dos capacetes azuis da ONU estão retirando-se devagar porque ainda há perigos nas esquinas. Participei de uma jornada sobre saúde e pastoral da saúde, com gente de toda a ilha e foi surpresa agradável a qualidade dos debates e da reflexão.

Recuperar a saúde individual e coletiva é um desafio urgente. A cidade está renascendo lentamente. Impressiona a quantidade de prédios e construções carbonizadas, antigos hotéis, repartições públicas, inclusive a casa de dom Belo, o bispo Nobel da Paz, tudo ardeu durante 15 dias, quando as milícias e os militares indonésios se retiraram, assassinando, queimando e destruindo. O pesadelo e o horror permanecem no inconsciente.

Comissões "pela verdade e pela reconciliação" trabalham há 4 anos. Esse ano serão publicados os relatórios. Mas, os dois generais que comandaram as operações de extermínio, serão candidatos às eleições no dia 02 de julho próximo. Acompanhem! O povo cala, parece tímido, mas è porque ainda não confia. Pouco a pouco as estruturas e os serviços são reconstruídos.
Mais difícil é recompor a vida, as relações feridas.

Aqui, tudo se encontra. Todos os povos, ONGs, UM, Organizações trabalham. A queixa é grande em relação à distancia desses técnicos da vida real, humilde desse povo "baixinho, amorenado". Crianças e jovens, de uma beleza encantadora, sorriem largamente e cumprimentam. A Igreja Católica teve papel histórico grandioso na época da ocupação. É, porém, uma Igreja que não conheceu o concílio Vaticano II, Igreja Povo de Deus, comunidades de base. Há poder concentrado nas Congregações presentes.

Cuidam um pouco de si mesmas, não marcam presença ativa junto aos sofredores: constatação feita pelo novo Bispo de Dili, na Sagração no dia 02 de maio passado, diante de 20.000 pessoas em bonita celebração campal.
Há esperança, há confiança nas lideranças que foram, durante tanto tempo, à luta da independência. A natalidade é elevada. Nascem muitas crianças, mesmo em contextos de risco e fragilidade. São muitas tarefas ao mesmo tempo. Cuidar da vida "ferida como esta", na palavra do Zé Vicente.

Caminho pelas ruas, reconheço os sinais da realidade urbana, a lógica da exclusão aumentando: turmas de crianças pedindo esmola, perambulando em pequenos bandos, o lixo e os esgotos a céu aberto. A informação é pouca, os jornais começam a circular, um canal de TV, algumas rádios. Luz elétrica racionada. Isto na cidade porque na serra distante onde vivem antigas populações e onde trabalham duas equipes de irmãs brasileiras, existe um gerador parado por falta de combustível e as comunicações não existem, a não ser a rádio de emergência da policia.

O campo de trabalho é grande.
Penso por onde deve andar o caminho da missão. Penso no grão de mostarda que está crescendo, na força extraordinária desses enfraquecidos e encurvados sob o peso que carregam. Admiro algumas dezenas de pessoas que eu conheci (e quem sabe quantas mais?). Tecelãs e tecelões de um dia novo.

Ficou um povo de viúvas e órfãos, de deslocados e traumatizados. Mas é um povo que herdou o gosto da festa: cantam bonito, gostam de corais.
Nós, das comunidades brasileiras, temos belas experiências a contar, mas timorense capricha no canto, na liturgia, na dimensão da alegria. É um contrapeso importante.

Ligar missão e cura, contatos humanos frequentes, ver a possibilidade de estender pequenas redes de comunidades urbanas, como estações da Vida ou pontos de encontro. Caminho apressadamente pelas ruas, olho e gravo as pichações ainda intactas da guerra, em tètun, em português e em bahtsa: há um quê de ameaça nessas frases. Ninguém as apagou. Como os prédios, às centenas, chamuscados, queimados. Precisa de tempo. A memória das vitimas (mais de 200.000) está ainda viva nas mentes e corações. Uma amiga, antes de partir, na Messejana, me colocou em crise, dizendo: "Vale a pena ir tão longe"?

A resposta provisória é mais ou menos assim: "Talvez demorei demais".
Timor Leste, "Lorosa" (o Sol que levanta). É o primeiro país que o Sol vê, ao surgir, toda manhã . Outro dia me despedi da repórter de guerra Rosely Forganes, paulista, que escreveu "QUEIMADO, QUEIMADO, MAS AGORA NOSSO".

Vale a pena ler algo novo. Algo sempre está acontecendo, um pouco mais ao leste, para um leste mais distante.

Amanhã, em Dili.

Junho de 2004.

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